sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Complementando Schopenhauer

Complementando Schopenhauer

Complementando Schopenhauer

“O Budismo é a religião mais elevada e a sua doutrina ética é ortodoxa em toda a Ásia, excepto onde prevalece a detestável doutrina do Islão.” – Arthur Schopenhauer

O Pessimismo

Ao contrário da maioria dos filósofos do seu tempo (exceptuando Kierkegaard) Schopenhauer foi um filósofo pessimista. Tanto os pessimistas como os optimistas, e exceptuando Fichte, tiveram o problema de tentar interpretar a Vida à luz da Razão disponível; Fichte foi o único no seu tempo que defendeu a ideia de que o saber humano era limitado e em evolução em direcção ao Saber Absoluto.

“Cientificamente, tanto o pessimismo como o optimismo são refutáveis; o optimismo tenta provar que o universo existe para nos agradar, e o pessimismo que ele existe para nos desagradar. Nenhum pode demonstrar-se.” – Bertrand Russell, filósofo racionalista e ateu

Contudo, a refutabilidade por parte da ciência em relação ao pessimismo e ao optimismo não é dialéctica. Seguindo o raciocínio do “ateu” e “racionalista” Bertrand Russell, perante a refutação, por parte da ciência, do pessimismo e do optimismo, ficamos sem saber qual o valor dialéctico escolhido. Quando refutamos alguma coisa sem elegermos outra, ou se elegemos o Nada (ausência de valor) como valor dialéctico, somos pessimistas. O pessimismo é, por inerência, a negação da dialéctica Hegeliana, e Russell admitiu assim o pessimismo da ciência. A alternativa de Russell seria invocar o “nexo dos distintos” de Croce (complementarei Benedetto Croce, um dia destes) em contraponto à “dialéctica dos opostos” de Hegel. Porém, o reconhecimento de uma hierarquia de valores crociana na Razão levaria Russell a reconhecer a existência de uma Supra-razão, uma Razão que transcende o Homem (racionalismo absoluto de Hegel), coisa que Russell sempre recusou. O problema dos ateus é que caem constantemente nas suas próprias armadilhas retóricas, e a vantagem dos teístas é que encontram sempre uma justificação para os fenómenos, mesmo que essas justificações não sejam (ainda) cientificamente comprovadas.
Ao contrário de Russell, eu penso que a verdadeira ciência é optimista, porque parte do princípio que o universo existe para fazer feliz o Homem e procura constantemente a chave dessa felicidade.

A herança de Kant

Arthur Schopenhauer nasceu a 22 de Fevereiro de 1788 em Dantzig, então cidade-estado desavinda da Prússia, hoje cidade da Polónia (Gdansk), filho de pai rico e de mãe intelectual, e morreu em 1860. Schopenhauer frequentou a universidade de Gottingen. Na sua filosofia, declarou-se influenciado por Kant — que considerou o filósofo mais importante de toda a história do pensamento —, por Platão e por Upanishads, mas penso que de Platão não terá tido grande influência nele, mas antes a filosofia da idade helenística.

Schopenhauer desprezou Hegel, criticou Schelling, tolerou Fichte — que considerou ter talento, mas mal usado —, mas foi em Kant que baseou a sua filosofia. Kant faz a distinção entre “fenómeno”e “noumeno”, sendo o “fenómeno” a natureza, e o “noumeno” a “substância transcendental”, a “coisa-em-si”, e foi a partir deste princípio de Kant que Schopenhauer desenvolve a sua teoria. Enquanto que Fichte e Hegel transformaram o “noumeno” kantiano num dado metafísico, Schopenhauer identificou o noumeno com a Vontade (por isso é que é essencial compreender Kant e a sua “Crítica da Razão Pura”; sem ele, uma data de filósofos não fazem sentido, incluindo Fichte, Hegel e até Marx).
Para Kant, o “fenómeno” é a realidade cujo conhecimento limitado está acessível ao ser humano, e o “noumeno” é o limite desse conhecimento. Para Schopenhauer, o “fenómeno” é a aparência e a ilusão daquilo a que chamamos de “realidade”, e o “noumeno” é a verdadeira realidade que se esconde por detrás da aparência e da ilusão. Schopenhauer altera os conceitos de “fenómeno” e de “noumeno” de Kant, por influência claríssima da filosofia budista.

Por exemplo, seguindo o pensamento de Schopenhauer, o que na nossa percepção (fenómeno) aparece como sendo o nosso corpo, é a nossa vontade (noumeno).
Sob o ponto de vista budista, esta constatação é verdadeira, porque o budismo remete o conceito de Vontade para a vontade espiritual no ciclo de reincarnações. Para o budismo, independentemente da nossa herança genética, que é uma realidade inquestionável, existe a vontade espiritual que molda em grande percentagem o ser humano. Uma pessoa é o que é, não só por influência genética, cultural, biológica, empírica, e até por influência astrológica, mas essencialmente pela vontade do espírito em ser o que é em cada vida vivida no Espaço-tempo, através das reincarnações que determinam os diferentes estádios da evolução espiritual. Foi a Upanishads e ao budismo que Schopenhauer foi buscar a sua teoria, condimentando-a com Kant para a racionalizar, embora não pudesse ir muito longe na influência budista do seu pensamento, devido ao racionalismo dogmático europeu que o consideraria, de imediato, como lunático.

Kant defendeu a ideia de que o estudo da lei moral pode levar-nos para além dos “fenómenos” (“fenómenos” de Kant = realidade natural) e dar-nos o conhecimento que a percepção sensível não nos pode dar, e afirmou que a lei moral diz respeito essencialmente à vontade. Russell diz-nos que a lei moral resulta do “desejo” individual. Para Schopenhauer, a Vontade a que a lei moral diz respeito não é o “desejo” Russeliano, mas a Vontade segundo a concepção budista, que para além do “fenómeno” envolve o “noumeno”. Russell limita a lei moral ao simples “desejo” do ser humano, “desejo” como expressão individual material, despojado de qualquer influência metafísica. Para Kant, a diferença entre um homem bom e um homem mau está na diferença do mundo das “coisas-em-si” (noumeno) dos dois homens, e portanto, na diferença da vontade que reflecte a diferença do mundo das “coisas-em-si” nos dois homens.

O racionalismo dogmático ocidental produz caricaturas, porque em vez de Kant dizer que a “coisa-em-si” ou que a “subjectividade transcendental” é a “essência espiritual”, chama-lhe outros nomes para fugir à “perseguição” ideológica dos materialistas e dos racionalistas dogmáticos. Exagerando um pouco, e para que se compreenda o que quero dizer: à semelhança do que acontecia com os escritores e jornalistas no tempo da PIDE, os filósofos iluministas, sejam os do século 19 como os contemporâneos, têm que falar por códigos, sinónimos, paráfrases e conceitos mais ou menos abstractos, para escapar à censura ideológica do racionalismo dogmático intelectual, “científico” e politicamente correcto. Se Kant tivesse falado em “essência espiritual” em vez de “coisa-em-si”, seria porventura um filósofo esquecido pela História. Graças à dissimulação ideológica de Kant em plena Era de afirmação do racionalismo cartesiano, o “idealismo” pode desenvolver-se; por isso, Kant terá sido o filósofo europeu mais sagaz e inteligente.

A Vontade

Mas voltemos a Schopenhauer. Para evitar a todo o custo referir-se à Vontade implícita no princípio da reincarnação budista, Schopenhauer limitou-se a falar na Vontade Universal. Quando falei de Fichte, referi um princípio comum a várias religiões: o “princípio Potencial” do Absoluto (deídade), que caracteriza a capacidade da Vontade do Absoluto em si próprio e com propósito em si.
Schopenhauer atém-se ao “princípio Potencial” do Absoluto, à capacidade volitiva infinita, e por isso, una e indivisível e independente de toda a individuação. Sendo que a “subjectividade transcendental” kantiana (a essência espiritual) é, segundo Fichte e Schopenhauer, decorrente da consubstancialidade do Homem com o Absoluto, a Vontade Infinita existe no Homem como em qualquer outro ser da natureza. Note-se que o budismo considera que todos os seres vivos, racionais e irracionais, têm espírito (não confundir “espírito” com “alma”) ou a “centelha do Absoluto”. Naturalmente que a visão de Schopenhauer sobre a Vontade Infinita reflecte a filosofia budista.

Se para Hegel “o que é real é racional”, isto é, a realidade (o “fenómeno”) é Razão, para Schopenhauer a realidade é Vontade irracional, sendo que “irracional” se deve entender como algo que está para além da compreensão humana. O optimista Hegel justifica racionalmente tudo aquilo “que é”, que existe na natureza; o pessimista Schopenhauer pretende negar tudo o “que é”, porque tudo o “que é” é aparência, ilusão e resultado da Vontade Absoluta que o Homem não compreende.

Complementando: eu penso que Hegel e Schopenhauer tinham ambos razão: a) a natureza é racional (Hegel) porque faz parte da Razão Universal, b) a natureza é criada e, por isso, finita, sendo uma “sombra”, uma aparência, uma ilusão, um Ersatz à imagem do Absoluto (Schopenhauer), não deixando por isso de ser racional, c) a Razão é um valor infinito (segundo o conceito de “Saber Absoluto” de Fichte) que está presente na realidade finita (Schopenhauer e Hegel), d) a capacidade volitiva do Absoluto está presente em todas as manifestações do Finito (o conceito budista da “Vontade” de Schopenhauer). Na minha opinião, o Finito e Infinito são ambos reais, e na medida em que o Finito é criado a partir do Infinito, a Razão do Finito advém da Razão infinita.

A Individualidade

Tanto Hegel como Schopenhauer consideram que a individualidade do ser humano tem pouca importância, em Hegel por causa do anseio pelo Infinito, em Schopenhauer por causa da individualidade como sendo uma aparência e uma ilusão.

A Vontade do Homem, sendo parte da “coisa-em-si” e não do Espaço-tempo, e sendo por isso – segundo Schopenhauer – real, não só não pode ser datada de acordo com critérios do Espaço-tempo, como não pode ser composta de actos de vontade separados, porque o tempo e o espaço são fonte da pluralidade que preside ao “princípio da individuação” – segundo a escolástica, o princípio segundo o qual um ser humano (ou outro ser vivo) se singulariza numa realidade única; por exemplo: Orlando Braga.
Aqui, há que ter em atenção a distinção budista entre “espírito” e “alma”. De facto, segundo o budismo que Schopenhauer estudou, o “espírito” (“coisa-em-si”) está livre do “princípio da individuação” e da separação de actos de Vontade inerente ao Espaço-tempo, mas a “alma” é a intermediária entre o Espaço-tempo e o “noumeno” espiritual, entre o Finito e o Infinito – é a “alma” que permite que o “noumeno” se sujeite, indirectamente, ao “princípio da individuação” no Espaço-tempo. Segundo o budismo, a “alma” pode ser datada e sujeita-se ao critério da pluralidade do Espaço-tempo durante o seu ciclo de reencarnações, e Schopenhauer sabia dessa teoria budista. Quando ele se refere à realidade intemporal e inespacial da “coisa-em-si”, refere-se ao espírito, e não à alma.
Para Schopenhauer, o melhor dos mitos é o nirvana budista, que para ele significa “extinção”. Contudo, sabemos que o Nirvana budista é a “União com o Todo”, a ausência de individualidade que essa união implica, e não no sentido de “extinção” que Schopenhauer lhe dá.
Schopenhauer fugiu da teoria da reencarnação budista como o diabo da cruz. Segundo Schopenhauer, a teoria budista da reincarnação, não sendo totalmente verdadeira, diz a verdade em forma de mito. Não sei se Schopenhauer não entendeu o budismo, se não o aceitou completamente, ou se o analisou do alto da sua cátedra racionalista – embora tivesse uma estátua de Buda no seu escritório.

Liberdade e libertação

A liberdade, em Hegel, está estritamente ligada à necessidade dialéctica – herdada de Aristóteles, transformada por Kant, e optimizada por Hegel, que segundo este último, o falso se torna em algo de positivo, sendo o falso um momento necessário ao verdadeiro: a restrição da liberdade (negativo) é necessária à própria liberdade (positivo). Para Schopenhauer, não existe liberdade, porque o ser humano está sujeito ao determinismo do mundo dos fenómenos.
Aqui, temos que saber se a “liberdade” era para Hegel o mesmo que para Schopenhauer. Hegel considera que a liberdade condicionada pelo Espaço-tempo não deixa de ser liberdade; Schopenhauer acha que tudo que não seja a liberdade total não é liberdade. Continuo a pensar que ambos têm razão.

Para Schopenhauer, a “vontade cósmica” não corresponde à “vontade divina” de Espinosa. Para este, a virtude estaria em consonância com a vontade divina: para Schopenhauer, a vontade cósmica é perversa, está internamente dividida e é discordante e devoradora de si própria – talvez porque para Schopenhauer o bem e o mal tenham origem na Vontade cósmica, porque para Schopenhauer não fazia sentido separar o bem e o mal da mesma fonte de Vontade. O que fazia sentido para Schopenhauer era a libertação do Homem em relação a essa Vontade.
Na minha opinião, contudo, assim como a antimatéria é a ausência de matéria, a escuridão absoluta é total ausência de luz – o mal absoluto é a total ausência do bem; nesta perspectiva, concordo mais com panteísmo de Espinosa do que com Schopenhauer, que não sendo ateu, também não era um panteísta; o mundo do panteísmo é um mundo de optimismo, exactamente onde o mundo de Schopenhauer existe unicamente para o negar.
A teoria de Schopenhauer é fruto de uma tentativa de racionalização do budismo; em resultado desta racionalização, Schopenhauer pretende quebrar os laços da vontade individual – não para atingir a harmonia com Deus, procurando um qualquer bem positivo, mas com um propósito inteiramente negativo resultante da tentativa de racionalização dos princípios da filosofia religiosa budista.

Sendo que para Schopenhauer a Vontade cósmica é perversa, é a fonte infindável de todo o sofrimento do ser humano, é também a essência da vida humana e aumenta com o conhecimento: quanto mais conhecimento tem o Homem, mais sofre a perversão da Vontade cósmica. A Vontade cósmica não tem como fim a felicidade, porque não define este fim ou qualquer outro, e embora a morte seja o termo do sofrimento, perseguimos os nossos fins fúteis. A felicidade não existe porque sentimos pena de um desejo não realizado, mas realizando-o, sentimos saciedade e fastio. Segundo Schopenhauer, o instinto humano incita à procriação que provoca mais sofrimento e morte, e por isso há o pudor do acto sexual.

Para Schopenhauer, o mundo dos fenómenos (a aparência, a ilusão) é sinónimo de sofrimento e dor; por isso, ele recomenda o ascetismo – a luta contra os impulsos discordantes da Vontade – como forma de libertação. A injustiça é a condição da Vontade em viver dividida e discordante, através dos diversos indivíduos. O homem mau não é apenas o que faz mal aos outros, é também aquele que vive constantemente atormentado pelo mal que lhe fizeram (aqui, a influência budista é clara). A resignação, a pobreza, o sacrifício e o ascetismo em geral têm o mesmo objectivo: libertar-nos dos grilhões da Vontade de viver, extingui-los e anulá-los (budismo, outra vez). A supressão da vontade de viver é o único e verdadeiro acto de liberdade que é possível ao Homem assumir, mas o suicídio é inútil, porque não é uma manifestação da negação da vontade, mas uma enérgica afirmação da mesma – aqui, mais uma vez a influência do budismo. O suicida quer a vida, estando só descontente com aquela vida que lhe coube em sorte; destruindo seu corpo, não destrói a vontade de viver, que não sofre minimamente com o seu gesto. Para que a vontade de viver fosse destruída em toda a Humanidade, bastaria que um único indivíduo conseguisse destruir a sua vontade de viver (sem suicídio), porque a vontade de viver é uma só e comum a todos.

Contudo, o próprio Schopenhauer esteve longe de uma vida ascética que recomendou na sua filosofia, e explica porquê:

“Que o santo seja um filósofo é tão pouco importante, como pouco importante é que o filósofo seja um santo. (…) Representar abstractamente, universalmente, limpidamente, em conceitos a essência do mundo, e deste modo, qualquer imagem reflexa, colocá-la nos permanentes e sempre proporcionados conceitos da Razão: isto sim é a filosofia e não outra coisa.” – Schopenhauer (“Welt”)

Dou um conselho a quem se interesse por Schopenhauer: leia antes alguma coisa sobre o budismo; tem a mesma essência e, ao menos, dá-nos a “Possibilidade” que Kierkegaard definiu como sendo a maior necessidade do Homem.
De resto, Schopenhauer foi totalmente incoerente com a sua filosofia: mulherengo, nunca assumiu um casamento; jantava bem nos melhores restaurantes, não dava esmolas por uma questão de princípio, era muito conflituoso e extremamente egoísta.
Uma vez, Schopenhauer irritou-se com uma velha costureira que estava a falar com um amigo à porta do seu apartamento; atirou-a pela escada abaixo, e a velha ficou inválida. O tribunal condenou Schopenhauer a pagar uma pensão vitalícia à costureira, e quando esta morreu, Schopenhauer escrevinhou no seu livro de contas: “Obit anus, abit onus” (“morta a velha, finda a carga”).

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Tags: esp��rita, filosofia, blogger
December 23, 2016 at 09:15AM
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